Como o CADE analise se uma empresa violou o dever de notificar uma operação econômica?

Andrew Macara – Jumping off a wall. 2015.

A Lei nº 12.529/2011 ou Lei de Defesa da Concorrência (LDC), que completou 10 anos no último dia 29 de maio de 2022, introduziu no Brasil o controle prévio de controle de estruturas. Ou seja, o Art. 88 da LDC, atualizado pela Portaria Interministerial nº 994/2012, definiu que operações econômicas envolvendo empresas que tenham tido faturamento bruto no ano anterior de pelo menos R$ 750 milhões e R$ 75 milhões têm a obrigação de serem submetidas ao escrutínio do CADE.

Entretanto, caso uma operação, cujas partes tenham ultrapassado tais tetos, não seja notificada ao CADE, então o Art. 88, §3º da LDC prevê a aplicação de multa para tais empresas. Essa multa tem o valor mínimo de R$ 60 mil e podem alcançar o valor de R$ 60 milhões.

Caso o CADE, por conta própria ou provocado por terceiros, identifique que uma operação de notificação obrigatória não tenha respeitado o Art. 88 da LDC, então o órgão pode instaurar um dito Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração (APAC).

Esse procedimento, denominado APAC, está regulamentado pela Resolução nº 24/2019 do CADE bem como nos Artigos 112 e 113 do Regimento Interno do CADE, além do Art. 88, §3º da LDC.

O processo de investigação é conduzido pela Superintendência-Geral (SG) do CADE, que terá 3 alternativas: a) arquivar; b) confirmar a infração; c) ou instaurar a abertura de um Processo Administrativo. Interessante notar que o APAC é Procedimento que se integra ao Processo Administrativo para Análise de Ato de Concentração.

Nesse sentido, caso o procedimento seja arquivado pela SG, então há a possibilidade de algum Conselheiro provocar a avocação do APAC para análise do Tribunal do CADE (TADE), devendo um Conselheiro-Relator ser sorteado em até 48 horas. Esse Relator será o mesmo da análise do Ato de Concentração no Tribunal.

O APAC engloba três situações: (i) quando uma operação econômica, composta por partes com faturamento acima dos pisos da Portaria Interministerial nº 994/2012, não é notificada ao CADE antes da sua efetivação; (ii) quando uma operação de notificação obrigatória é submetida, mas antes da decisão final do CADE passa a ser efetivada; (iii) ou quando uma operação não é de notificação obrigatória, mas o CADE entende que ela deva ser submetida à sua análise.

i. Operação econômica com violação do dever de notificar

Essa hipótese está delineada entre os Artigos 10 e 13 da Resolução nº 24/2019 e é o caso em que as partes com faturamento acima dos pisos estabelecidos pela Portaria Interministerial nº 994/2012 não submetem a operação a avaliação do CADE.

Nessa situação, o Procedimento terá início na SG, que terá 3 possibilidades de decisão: a) determinar o arquivamento; b) concluir pela necessidade de notificação da operação; c) ou decidir pela instauração de Processo Administrativo. Caso a SG entenda que a operação seria sim de notificação obrigatória, então o APAC será enviado diretamente para análise do Tribunal do CADE (TADE).

O TADE, por sua vez, possui 3 alternativas de decisão semelhantes às disponibilizadas à SG: a) determinar o arquivamento; b) determinar a notificação da operação com a aplicação de multa e reversão dos atos firmados no âmbito da operação até a decisão final do CADE; c) ou abertura de Processo Administrativo.

Caso a decisão do Plenário seja a de que a operação deva ser notificada, então da data da publicação desta decisão no Diário Oficial da União, as partes têm 30 dias para realizarem tal notificação. Caso a SG entenda que há necessidade de informações complementares, o que se denomina “emenda”, então a própria SG definirá o prazo para que tal emenda seja realizada pelas partes. Caso tal emenda não seja realizada, então a SG poderá aplicar multa diária de R$ 5 mil, que ainda pode ser multiplicada em até 20 vezes para garantir a realização de tal ordem.

O grande risco existente nessa situação é quanto a interpretação do que seja considerado como grupo econômico para fins de cálculo de faturamento, fazendo com que as partes tenham a falsa percepção de que elas não tenham atingido o piso de faturamento que as façam se enquadrar nos termos do Art. 88 da LDC. Outra situação que ocorre quanto a essa hipótese está relacionada com empresas multinacionais que não notificam no Brasil operações econômicas realizadas no exterior. Caso tais empresas atinjam o equivalente aos pisos de faturamento em relação ao seu grupo econômica e possuam no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante, então a notificação dessa operação se torna obrigatória perante o CADE. Mais detalhes podem ser encontrados em artigo específico sobre o tema[1].

ii. Operação econômica notificada, mas que se efetiva antes da decisão final do CADE

Essa hipótese está delineada entre os artigos 7º e 9º da Resolução nº 24/2019 e é o caso em que as partes atingem os critérios de faturamento e notificam a operação ao CADE, porém efetivam a operação antes da decisão final da Autoridade.

Segundo o Guia do CADE sobre Gun Jumping[2] (Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica), são 3 as situações que podem levar a efetivação da operação e que, se ocorrem antes da decisão final do CADE, podem representar a violação do Art. 88 da LDC: (i) trocas de informações entre os agentes econômicos envolvidos em um determinado ato de concentração; (ii) definição de cláusulas contratuais que regem a relação entre agentes econômicos; e (iii) atividades das partes antes e durante a implementação do ato de concentração.

Aqui, as empresas devem tomar muito cuidado durante o período entre a notificação da operação e a decisão final do CADE. Recomenda-se que qualquer eventual comunicação a ser realizada para o mercado sobre a operação seja previamente discutida com o especialista que estiver atuando no caso e que se mantenha a máxima prudência na comunicação entre as partes de modo a se evitar qualquer situação que venha a ser denunciada ao CADE como “Gun Jumping”.

iii. Operação econômica sem a necessidade de notificação obrigatória, mas que o CADE decida pela sua notificação.

Embora seja uma situação que possa ser considerada como excepcional, o CADE pode determinar a notificação de uma determinada operação mesmo que ela não esteja dentro dos parâmetros determinados pelo Art. 88 da LDC. O estabelecimento de pisos de faturamento é um corte arbitrário que se faz de modo a equalizar os escassos recursos disponíveis ao CADE para aquelas operações que tenham maior probabilidade de causar algum impacto relevante do ponto de vista econômico. De toda forma, sobretudo em tempos de crescimento rápido de empresas de tecnologia, há situações em que a Autoridade possa observar a existência de uma determinada operação que possa a vir causar impactos relevantes no ambiente concorrencial nacional. Em tais situações, o CADE pode se valer de um APAC para buscar que tais partes notifiquem a operação para que seja feita a análise sobre seus possíveis efeitos.

Essa possibilidade foi prevista pelo Art. 88, §7º da LDC bem como pelos Arts. 14 a 17 da Resolução nº 24/2019 do CADE.

Como não se trata de infração a ordem econômica, nesse caso, a SG tem apenas 2 possibilidades: a) concluir pelo arquivamento do feito; b) ou determinar a notificação da operação nos termos do Art. 88 da LDC. As partes serão comunicadas caso a SG decida pela obrigatoriedade da notificação. A partir dessa comunicação, as partes têm 15 dias para interpor recurso ao TADE contra a obrigatoriedade de notificação determinada pela SG.

As partes têm 30 dias para realizarem a notificação da operação junto ao CADE. Caso a empresa não recorra da decisão da SG, então os 30 dias se dão a partir do término do prazo de 15 dias que as partes dispõem para interpor recurso ao TADE. Entretanto, caso uma das partes interponha recurso ao TADE, então o prazo se dá a partir da ciência da decisão do TADE pela obrigatoriedade de notificação.

Penalidades

Embora o Art. 21 da Resolução nº 24/2019 traga um conjunto de regras para quantificar a multa a ser aplicada em caso de comprovação do “Gun Jumping”, o Art. 22 da Resolução permite que o TADE desconsidere tais regras para determinar um valor discricionário, desde que entre R$ 60 mil e R$ 60 milhões.

Ademais, o Art. 23 da Resolução nº 24/2019 permite que os APACs sejam encerrados mediante acordo celebrado com a Autoridade.

APAC nº 08700.005713/2020-36 – Representadas: Veolia Environnement S.A. e Engie S.A.

Na 197ª Sessão Ordinária de Julgamento, ocorrida em 25 de maio de 2022, foi à pauta o APAC que surgiu da representação apresentada pela Suez S.A e indicando que as empresas Veolia Environnement S.A. e Engie S.A. teriam realizado operação econômica que seria de notificação obrigatória ao CADE. O caso foi relatado pela Conselheira Lenisa Prado.

Segundo a representação, a Veolia teria adquirido a totalidade das ações que teria no capital social da Suez e que estavam sob poder da Engie.

Em paralelo a esta operação, a Veolia anunciou a intenção de realização de oferta pública voluntária para aquisição de ações com o objetivo de obter o controle da Suez em comunicado divulgado em 05 de outubro de 2020[3].

O mesmo comunicado indica que tal oferta pública ocorreria apenas se houvesse o aval da Diretoria da Suez, possivelmente após Assembleia de Acionistas. O documento indica que a Veolia não exerceria seus poderes políticos enquanto não tivesse luz verde da autoridade de concorrência da União Europeia.

A operação também seria notificada nos Estados Unidos, Marrocos, Reino Unido, China e Austrália, mas não menciona o Brasil, muito embora preenchidos os requisitos de notificação obrigatória em nossa jurisdição. Em 26 de janeiro de 2021, a Diretoria da Suez rejeitou a proposta da Veolia[4]. Segundo instrução da SG, a Engie informou que o comunicado do dia 05 de outubro de 2020 foi consolidado por meio de Contrato de Compra e Venda de Ações fechado em 06 de outubro de 2020.

Tanto Veolia, compradora, quanto a Suez, empresa-alvo, possuem atuação no Brasil. Ambas também têm faturamento acima do piso da Portaria Interministerial nº 994/2012. Dessa forma, tanto compradora quanto empresa-alvo preenchem os requisitos de notificação obrigatória do Art. 88 da LDC. Dado que a operação fora concretizada no dia 06 de outubro de 2020 sem a devida aprovação do CADE, então se observa a existência de violação ao dever de notificar.

Dessa forma, cronologicamente, em 09 de novembro de 2020, a Suez apresentou representação denunciando a ocorrência de Gun Jumping em relação a transferência de ações entre Engie e Veolia. Em 10 de março de 2021, a SG instaurou o APAC. Em 03 de dezembro de 2021 foi proferido o Despacho da SG enviando o APAC para o TADE e indicando que a operação seria de notificação obrigatória. Em 03 de dezembro de 2021, a SG emitiu Nota Técnica concluindo pela violação do Art. 88, § 3º da LDC em relação a operação.

Antes disso, em 13 de maio de 2021, a Veolia realizou a notificação da operação, que foi aprovada sem restrições pela SG em 29 de novembro de 2021 e transitando em julgado em 16 de dezembro de 2021.

Em 21 de março de 2022, as partes manifestaram interesse a Conselheira-Relatora Lenisa Prado. Em 17 de maio de 2022, a Veolia apresentou proposta de acordo, na qual a Compromissária faria a contribuição pecuniária no valor de R$ 60 milhões, o teto previsto pelo Art. 88, § 3º da LDC. O voto da relatora foi pela aprovação do acordo, o que foi acatado por unanimidade pelo plenário do TADE na sessão de 25 de maio de 2022. Assim, o Acordo de Apuração de Ato de Concentração foi assinado em 26 de maio de 2022.

Dessa forma, vemos a importância de que advogados e empresas envolvidos em operações econômicas se atentem à legislação concorrencial de modo que as partes envolvidas não incorram em custos elevados pela violação do eventual dever de notificar essa operação perante o CADE.


[1] https://medium.com/@kemiljarude/o-que-pode-ser-considerado-como-gun-jumping-pelo-cade-7ef7b098821e

[2] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/gun-jumping-versao-final.pdf

[3] https://www.veolia.com/sites/g/files/dvc4206/files/document/2020/10/Finance_CP_Veolia_Engie_Suez_051020_ENG.pdf

[4] https://www.ft.com/content/e5a09a98-18b0-42da-b411-c9cfb3149447

Estupro, propaganda estatal e a sombra da ditadura: onde está a nossa democracia.

Essa semana o IPEA, Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, divulgou uma pesquisa na qual 58,5% dos entrevistados e entrevistas atribuíram às mulheres a causa a ser combatida para a redução do número de casos de estupros no Brasil.

(http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21847&catid=10&Itemid=9)

A pesquisa provocou a reação de grupos que se colocaram contra a opinião. O que se é esperado frente a uma opinião que claramente desconsidera a causa real do acontecimento de um estupro: o estuprador, quem pratica o ato violento, e não a pessoa que é violentada.

Tanto o fato de termos uma opinião como a majoritária encontrada pela pesquisa como a dos grupos revelam o quanto a sociedade brasileira, além de reconhecidamente machista e racista (mesmo que veladamente), ainda tem dificuldades em criar mecanismos que possibilitem o debate dos problemas que afetam o cotidiano das pessoas. A discussão pública do que afeta a todos ainda é um passo lento e vagarosamente dado pela nossa ainda tão nova democracia.

O senso comum de que o estupro ocorre motivado pelo modo como a Mulher se veste se soma a outros tanto piores, tais como: o de que a causa da pobreza, que não por coincidência é composta em grande parte por negras e negros, é a “preguiça” do pobre ou mesmo que o caminho para solucionar a violência é a construção de mais e mais presídios a morte de criminosos.

A pesquisa do IPEA mostrou como o instituto pode ter um papel importantíssimo na construção de uma sociedade brasileira mais democrática e justa: mostrando à própria sociedade como ela pensa e se comporta.

Não bastassem as diferenças salarias existentes entre homens e mulheres, o fato da mulher ter o que se conhece como jornada dupla ou tripla de trabalho, considerando o tempo que leva pra cuidar das filhas e filhos pela cultura ainda atrasada de que o cuidado do lar é exclusivo do sexo feminino, a cada 4 minutos uma mulher sofre algum tipo de agressão.

Há menos de um mês uma criança foi assassinada a pancadas pelo próprio pai porque gostava de cuidar da casa, o que foi considerado pelo assassino como falta de masculinidade da criança.

(http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/03/05/menino-de-8-anos-que-gostava-de-lavar-louca-morre-espancado-pelo-pai-no-rio.htm)

É interessante notar ainda a recente propaganda do governo paulista associando a falta de conforto pelo aperto no transporte público como uma vantagem para que homens pudessem “xavecar” mulheres. A propaganda parece não ter levado em consideração que tal tipo de “incentivo” só poderia levar ao aumento do número de casos de violência contra mulheres que ocorrem cotidianamente no transporte público da capital paulista. Não bastasse a vergonha das acusações de corrupção por desvio de dinheiro público que poderia ter sido utilizado na construção de mais linhas de metrô, o Estado de São Paulo parece perder a noção dos efeitos que uma propaganda institucional pode causar na população.

Talvez se o dinheiro tivesse sido gasto da forma como deveria, então tivéssemos mais espaço pras pessoas se locomoverem com mais conforto e dignidade e então pudéssemos evitar ainda mais os abusos daqueles que ainda não aprenderam a ter o mínimo de respeito pelas pessoas do sexo oposto. Mas aqui parece que não temos nem um e nem o outro…

(http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/sp-propaganda-do-governo-incentiva-xaveco-no-metro,51a2a14aedaf4410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html)

Quando o próprio Estado se esquece dos problemas da sociedade e incentiva aquilo que deveria ser reprimido, então cabe à própria população debater e criticar tais ações numa tentativa de fazer uma democracia de fato surgir no país.

As redes sociais, em todos esses três casos, mostraram-se como um instrumento poderoso no exercício e na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil, mesmo embora tenhamos a privacidade de tal exercício violada por outros países em atividades de espionagem.

 Amanhã o país lembra os 50 anos do golpe militar que derrubou e destruiu o então Estado Democrático de Direito que se esforçava para se fortalecer no país, o que nos permitiria a construção de uma sociedade menos atrasada e menos desigual por meio da disputa e do debate livre e democrático de ideias.

Não custa lembrar que a Ditadura se montou sobre sensos comuns disseminados por uma arquitetada estrutura de propaganda que ainda se revela em sensos comuns do tipo: “comunista comedor de criacinhas” ou de que sofreríamos um golpe de esquerda no país. Vis-a-vis ao Plano Cohen da ditadura de Vargas.

São de sensos comuns e da falta de debate que perdemos a liberdade há 50 anos. É contra a continuidade de sensos comuns e da falta de debate que nos esforçamos. Só numa sociedade que tenha liberdade de discutir a fundo os seus problemas é que poderemos então ter respostas diferentes a pudemos observar na pesquisa realizada pelo IPEA bem como das respostas prontas que ouvimos a todo momento sobre os nossos problemas.

A inversão da noção de sociedade no Brasil: onde o privado impera sobre o público.

Já sabíamos de Aristóteles que o homem é um animal político. A pólis, sobre a qual a política cuida, era o espaço por excelência da coletividade latina. O Ser humano vive em sociedade e nada além disso. A noção de comum é o que nos motiva a contribuir na perspectiva de que só se é possível sobreviver se podemos dividir nossas tarefas mais básicas de sobrevivência. Em uma sociedade em que tudo se generaliza, pela perda de noção dos limites reais, contribuir é de alguma forma manter a si e a humanidade em continuo movimento, viva.

Ora, diante disso, e do nosso mais básico saber, o público, aquilo que pertence a todos, configura como arcabouço simbólico que identifica espaço e objetos como necessários para que tal sobrevivência social se reverbere. O privado, como contraponto do público, coloca-se como aquilo necessário para a vida social em escala menor, permitindo que tal redução populacional possa ter aquilo que lhe é necessário para contribuir com a imagem maior do todo.

O pensamento que acompanhou a evolução do capitalismo exacerbou a noção privado, passando a associá-lo com o aquilo que tem o caráter de individual. Mesmo embora muitos objetos possam ter serventia para mais de um indivíduo, tal noção nos levou a crer que antes de tudo tal objeto pertence a apenas uma única e exclusiva pessoa, independente se possa servir para além dela.

Do ponto de vista econômico, esse período se iniciou na noção de que para enriquecer era preciso que se concentrassem grandes unidades econômicas sob a sua tutela para que a produção das riquezas geradas tivesse em si a figura de convergência para onde eram escorridas. No período do mercantilismo tal figura foi apossada no Rei, embora outros atores fossem os poços reais com os quais as riquezas os enchiam.

Com o Brasil não foi diferente, longe de se vincular a uma noção tradicionalista. Descoberto nesse período, a então colônia portuguesa era um território onde se poderia organizar os fatores de produção para a fabricação da joia mercantil do período: o açúcar. Para tanto, a Coroa não mediu esforços em se tornar sócio, seja financiando seja permitindo o uso do seu território, daquilo que foi o primeiro ciclo econômico mais pujante, fora o da extração do pau-Brasil.

Já tínhamos ali uma sociedade que se formava a partir da noção de privado uma vez que a perspectiva da produção econômica e do crescimento estava longe o de ser fomentar o surgimento de uma nova sociedade ou o bem estar das pessoas, mas o de enriquecer os cofres públicos portugueses. A coletividade era sempre vista como a dos subalternos, a da “ralé”. O público era antônimo da qualidade de vida e do poder econômico. O público era o antônimo do senhor de engenho ou da sua sociedade real, do privado.

Tal noção se reforça com a escravidão, quando não ser negro e ter escravos significava que a propriedade privada dava condições de exercício de poder na sociedade. Os exemplos e construções históricas poderiam ser muitos, no entanto, é já possível observar que a participação na sociedade, no espaço pretensamente público, dava-se como necessidade de um exercício comparativo de poder econômico. O que estivesse fora disso, inclusive, não pertenceria a ninguém, senão ao Estado.

Como tudo o que é passível de pertencer a alguém não pode pertencer a todos, sob o risco de ser identificado como de ninguém e, portanto, passível de ser apropriado por alguém, então o público deveria pertencer ao Estado, do contrário poderia virar privado. Ora, mas a quem se não a todos pertence aquilo que é do Estado.

No entanto, tal pensamento privatista também corrompeu tal noção quando se passa a associar o Estado como tal estrutura que seria de pertencimento dos políticos uma vez que a eles fora dado a legitimidade pela população. Uma noção quase sagrada de que o Estado não poderia ser tocado pelo povo por não ser sua propriedade.

Nesse levante, as mesmas elites econômicas que se constituíram como antônimos do público e praticamente apesar deles disputam e viabilizam sua condição de único grupo capaz de tomar para si as rédeas do poder estatal. Ora, se o Estado é visto enquanto pertencimento do político, oriundo das figuras do poder privado, então nem mesmo o “proprietário” do público o reivindica.

Não a toa, contemporaneamente no Brasil, enquanto vivemos uma nova necessidade de construirmos um estilo de vida que seja compatível com o meio ambiente global, ainda vemos o transporte público como algo que macula todo aquele que o utiliza com a marca de não proprietário, daquele que não é capaz de ser privado, praticamente daquele que não é capaz de viver em sociedade. Enquanto diversas outras sociedades, onde a noção de público é valorizada por se saber da sua necessidade enquanto elemento que permite a melhoria de vida de todas e todos, valorizam cada vez mais o transporte público como uma alternativa real para um organização industrial e social que seja compatível com o meio ambiente, no Brasil, ainda vivemos agarrados, como crianças-velhas a sua chupeta, a noção de que o transporte privado é o que pode permitir ter alguma qualidade de vida, apesar da piora das condições da qualidade do ar e do meio ambiente urbano extremamente piorados por tal noção.

O transporte público, no Brasil, nas suas mais variadas formas, faz-se forçada a figura de transporte daqueles que não podem participar do privado. Daqueles que restaram na sociedade real. Daqueles que não são senhores. A ele, enquanto meio daqueles que empregam a sua força de trabalho para a geração das riquezas do país, é marcado a noção de que trocados por escravos em nada seriam diferentes, sejam hoje brancos ou negros que permanecem sentados carregados em “latas de sardinha” que são chaqualhados por um trânsito caótico e por vias de má qualidade ainda tendo que contribuir com os autos lucros daqueles que são os proprietários privados do transporte, embora o transporte seja chamado de “público”.

Essa estrutura, enquanto opositora de algo que seja coletivo, nos leva a uma estrutura social sufocante. Em vez de divisão de tarefas só se é possível subordinação, hierarquia e divisões. Em vez de integração com mecanismo de proteção, temos tão somente distanciamento e exclusão.

Porque tu és.

A tua inteligência

É o ferrão que me entranha

E cuja dor me alimenta

 

O que seria de teu rosto

Se não fosse a tua boca

Que encanta ao se movimentar

me hipnotiza e encanta

pra onde eu quero correr

sempre que você me chamar.

 

Muitos te viram bela

Mas não te ouviram bela

Iludidos por uma reprodução

Falseada da realidade

Que mostra a beleza

Em placas de outdoor

E não em conversas demoradas

Ao som de jazz

E embebidas de vinho.

 

Mas um dia eu te ouvi

Fiquei imóvel

Não entendi

O que se passava.

 

Até que pude compreender

O que seria gostar

E entender a fórmula

Que me faria gostar de você

Independente da idade

Ou de qualquer tempo

E de qualquer distância.

 

Foi por esse inteligência

Que só você carrega

Que então me apaixonei.

À espreita

Quem sabe um dia vem

Aquela sensação

De ter você denovo aqui

 

Com teus cabelos loiros

Que me servem de anteparo

Pra dormir.

 

Quem sabe um dia vem

Aquele perfume doce

Que só você tem

 

Aquele afago gostoso que

Sua mão mais carinhosa

Consegue fazer

 

Vou olhar sempre pra janela

A espera daquela silhueta

Inesquecível

Que só o meu coração

Sabe reconhecer.

 

Um dia aquela voz doce

Vai me chamar denovo

E me deixar feito doido

Por você!

 

Inspiração do poetinha:
https://www.youtube.com/watch?v=eZ6F_Lphrho

O cara Wikipédia

Ele era um cara bem simpático

Conversa com todas e todos

As vezes parecia até um mágico

Sabia tanta coisa que até enganava

                                                            

Ele parecia que tinha lido toda a Wikipédia

Sabia muito sobre tudo, mas de coisas pequenas

Curiosidades que eram legais pra primeira hora

Mas que depois de um tempo

Dava vontade de mandar as favas.

 

Ele sabia muito sobre tudo

Mas não tinha experiências pra contar

Falava que era tudo muito sério

Mas não tinha vivido nada falar

Quem sabe alguma coisa ainda resta

Daquele cara Wikipédia

Que dizia muita peripécia

Mas não sabia preparar nada pro jantar.

Sonho que se sonha acordado não é sonho.

Você sonha que estar perdido em lugar e acorda assustado à noite. Você então fica um tempo acordado pensando: Não gostaria mesmo de ficar perdido como fiquei nesse sonho. Você volta a dormir. Os dias passam e a fica apenas aquela lembrança de sonho que pudesse ter sido causado pelo excesso de churrasco e de comidas afins do período de férias com a família.

Então eis que você resolve andar de bicicleta para conhecer a sua nova cidade e acaba errando a rua que deveria pegar para chegar finalmente em casa. Seu senso de direção é posto em ação. Você então começa a observar os lugares por onde passa na frustrada tentativa de reconhecer algo que pudesse te mostrar a direção certa.

Eis que você entra em um quarteirão e uma sensação estranha de acomete. Você já passou por ali. As fachadas. Os formatos dos prédios. Tudo parece chamar a atenção por parecer estranhamente comum. Até que você lembra daquele cenário de um sonho de uma noite de férias. É, eu estava ali. Não sei porque raios, mas o destino ou o que quer que seja me gotejou naquela porção d’água.

Não há mais o que fazer. Era a confirmação: estava perdido tal como sonhara. Com a diferença de não poder acordar daquilo. O jeito era seguir o caminho e tentar encontrar alguma via principal que me remetesse a alguma referência daquilo que seria o caminho pra casa.

Embora não pudesse acordar, pude, também não sei porque raios, pelo menos ter a cereja do bolo, que pelo menos surgiu como um super trunfo pra resolver aquele sonho que era realidade: você encontra uma amiga com a família arrumando coisas no carro e se despedindo de uma familiar. Eles se despediam e eu parecia sair daquela situação: “Sobe a ponte. Vai para o outro lado. Segue reto e vira a direita. Mais a frente você verá o supermercado e o resto você já sabe”.

-“Ok. Tchau, gente. Obrigado!”

Finalmente andei de bicicleta em Munique.

Caixa Cheia. Saco Cheio.

Spams enchem a minha caixa de e-mail

já não sei pra quem reclamar

propaganda é coisa boa

que parece ser bonzinha

e se precisar

te ensina a sair da escola

 

Spams enchem a minha caixa de emails

propaganda de viagem que ainda não posso comprar 

venda de sonhos ou ilusões 

pra que eu me mate de trabalhar.

 

Iscas enchem a minha caixa de emails.

Na tentativa nada boba de me agarrar

tomar meu bolso num rapel

pra amanhã me pendurar

 

Antes meu email era coisa séria

mandava trabalho da escola

recebia recado da namorada

Então esqueceram a ferramenta

e a deixaram tal como lixeira

de onde brotam spams sem parar.

Pensamento diuturno

Francisco era alguém comum que gostava de pensar. Era o que ele fazia mesmo quando tudo parecia ser caótico.

Era manhã. Ele acabara de acordar. Tinha que ir à aula. Não podia atrasar. Na noite anterior ele tinha ido à Pizzaria. Era algo comum para alguém que não tinha o costume de cozinhar em casa.

Como fazia sempre, ele pediu e pagou pela pizza. Antes, quando esperava a atendente chama-lo três pessoas aguardavam para pagar. Uma delas era alguém de olhos leves. Um sorriso simples, de rosto meigo. Aquilo perturbava Francisco, que já não conseguia pagar senão olhando ora ou outra para ela.

O celular toca. Francisco atende e passa a conversar. Resolve problemas e continua olhando. O pensamento flui como se a boca cuidasse dos problemas e o os olhos da mulher. Ela percebe e passa a olhar de volta. Olhares se trocam. O celular o prende. Os olhos pareciam já buscar beijá-la. Se a boca já deixasse imóvel o pensamento com aquele momento de lucidez atinente, quando o corpo já precisa de grandes complexidades teóricas para se mover.

Francisco não pode desligar. Talvez ele não conseguisse desligar. O celular o protegia de ir falar com ela. O medo batia ao estômago. O receio de ser mal entendido. Francisco temia não poder conversar, o ato maravilhoso da fala que se encaminha por si só.

Não se anda com estrela na testa. Francisco só poderia saber se daria certo se estivesse livre. Do celular e talvez de si mesmo.

A pizza ficou pronta. Francisco cumprimentou o pizzaiolo e olho para ela de lado. Tinha a vontade de se soltar de uma prisão para cair naquela outra. Labirinto mágico do desconhecido. Pegou a pizza e foi embora. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Talvez as leis da natureza também se contradigam. Talvez Francisco possa reencontrá-la já liberto e se arriscar a falar. Ele vai embora para casa. O jantar já estava em mãos.

Francisco então se levanta e se arruma para sair. As lembranças do dia anterior vão juntas. Coisas do pensamento diuturno. 

O desafio da participação democrática

O Movimento é pelo Passe Livre, mas a pauta dos que foram ontem às ruas parecia ser outras. Muitas vezes, tinha a impressão de que o Passe Livre nunca foi a pauta do movimento.

Disso, hoje muitas pessoas passaram a criticar um certo senso comum que parecia se manifestar nas palavras de ordem que eram reiteradamente repetidas no protesto.

Vejo nesse processo não um problema, mas uma possibilidade de análise e de resposta ao que vem acontecendo.

É preciso lembrar que, antes de tudo, que o foco dos protestos sempre foi o da redução da passagem do transporte público em São Paulo, a mais cara do país.

A ideia de que o “povo acordou” mostra uma clara contradição. Como é que o povo teria acordado somente agora, tendo em vista que os protestos já ocorriam há mais de uma semana? E os protestos que ocorrem diuturnamente puxados pelos movimentos sociais? As pessoas que compõe tais forças políticas não fazem parte do povo? Eles não estão acordados? Como se tem dito, se tais pessoas que ontem se intitularam “povo”, é preciso ter clareza, então, que a periferia nunca dormiu.

Falando em força política, chegava a ser engraçado os insultos e a verdadeira repressão frente aos partidos e outras agremiações políticas presentes ao ato. A atitude, que não era isolada, mostra-se como duas faces de uma moeda. De um lado mostra o quanto o nosso sistema político é fechado às demandas sociais, sejam às mais populares, sejam às mais elitizadas, ou mesmo no sentido de reduzir a diferença entre tais demandas.

Mas disso, mostrou-se uma verdadeira incoerência de quem insultava os partidos políticos ou mesmo pedia o fim deles: a última vez em que isso ocorreu ficou conhecido como DITADURA! Parecia que o grito de “sem violência” da última quinta, tinha se transformado em gritos de repressão tão violentos quanto. Aliás, cabe nos perguntar se as pessoas que praticavam tal ato de violência verbal eram as mesmas que sofrerem na pele a violência praticada pela PM.

Se a política do país não vem tendo a capacidade de dar respostas às essas tais insultores, certamente não é com o fim da política que as respostas surgirão. Afinal, a criação ou omissão de respostas às demandas da sociedade são todas medidas políticas. Talvez, os que hoje assim gritam tenham sido os mesmos que permaneceram inertes às escolhas dos representantes quando da falta de vontade de debater os projetos (ou a falta deles) oferecidos pelos partidos durante os períodos eleitorais ou que desprezaram o chamado daqueles que há tempos protestam contra os representantes que se comportam de forma omissiva.

É preciso que se lembre que muitos os partidos que foram repreendidos por exercerem seus igual livre DIREITO de se manifestar e exercer a sua liberdade de expressão, igualmente garantido na constituição (diga-se de passagem), sempre reivindicaram a melhoria do transporte público. Acima de tudo, deve-se saber que Partido é bem diferente de Governo, mesmo seja o primeiro ocupando segundo. Qualquer partido é maior do que o governo que ocupa.

Assim, apartidário seria o ato em que nenhum partido quisesse participar. Do contrário é absurdo impedir que os partidos políticos, grupos de pessoas que se expõe na tarefa de pensar e debater ideias que conduzem a vida da sociedade. Os partidos políticos são os instrumentos intrínsecos a qualquer democracia.

A política também é a arte das respostas. Também cabe aos agentes que tomam a ação política como tarefa de vida a atenção a tal situação de modo a aproveitar tal situação para integrar tal parcela da sociedade no debate que há tempo, repito, já é feito em nosso país sobre os problemas que assolam a todos. Criar medidas que tornem tal parcela com o sentimento de pertencimento ao debate pode ajuda-los a enxergar que eles não estão sozinhos no país.

De todo modo, é preciso ter clareza que o ato de ontem surgiu como resposta proporcional à atitude violenta da PM – SP tomada diante do exercício do DIREITO de manifestação e livre expressão violados por este estado.

Assim, mesmo com a impressão de certo senso comum da manifestação é preciso reconhecer o ganho tido na noite de ontem. Como fato atípico, à população, ou parte dela, ocupou o espaço público de fato. Coisa rara em uma cidade onde se mora, se transporta e se diverte quase que exclusivamente em espaços privados. As pessoas, de forma rara, tiveram de se encarar, ver e sentir, que não estão a sós, que precisam estar juntas, em sociedade, para garantir o cumprimento de direitos ou fazer com que mudanças ocorram. Debaixo do céu só a atitude humana é responsável pelo o que ocorre conosco. Não há milagre e nem reprodução automática de soluções. Só há pressão social, debate, diálogo e respeito (sem repressão, nem policial e nem contra queira defender suas ideias, organizadas ou não em forma de partidos políticos) que possam conduzir a soluções verdadeiramente próprias e que possam ser respostas efetivas aos nossos problemas. Aí está, com erros e acertos, um caminho para a participação mais democrática.