A Lei nº 12.529/2011 ou Lei de Defesa da Concorrência (LDC), que completou 10 anos no último dia 29 de maio de 2022, introduziu no Brasil o controle prévio de controle de estruturas. Ou seja, o Art. 88 da LDC, atualizado pela Portaria Interministerial nº 994/2012, definiu que operações econômicas envolvendo empresas que tenham tido faturamento bruto no ano anterior de pelo menos R$ 750 milhões e R$ 75 milhões têm a obrigação de serem submetidas ao escrutínio do CADE.
Entretanto, caso uma operação, cujas partes tenham ultrapassado tais tetos, não seja notificada ao CADE, então o Art. 88, §3º da LDC prevê a aplicação de multa para tais empresas. Essa multa tem o valor mínimo de R$ 60 mil e podem alcançar o valor de R$ 60 milhões.
Caso o CADE, por conta própria ou provocado por terceiros, identifique que uma operação de notificação obrigatória não tenha respeitado o Art. 88 da LDC, então o órgão pode instaurar um dito Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração (APAC).
Esse procedimento, denominado APAC, está regulamentado pela Resolução nº 24/2019 do CADE bem como nos Artigos 112 e 113 do Regimento Interno do CADE, além do Art. 88, §3º da LDC.
O processo de investigação é conduzido pela Superintendência-Geral (SG) do CADE, que terá 3 alternativas: a) arquivar; b) confirmar a infração; c) ou instaurar a abertura de um Processo Administrativo. Interessante notar que o APAC é Procedimento que se integra ao Processo Administrativo para Análise de Ato de Concentração.
Nesse sentido, caso o procedimento seja arquivado pela SG, então há a possibilidade de algum Conselheiro provocar a avocação do APAC para análise do Tribunal do CADE (TADE), devendo um Conselheiro-Relator ser sorteado em até 48 horas. Esse Relator será o mesmo da análise do Ato de Concentração no Tribunal.
O APAC engloba três situações: (i) quando uma operação econômica, composta por partes com faturamento acima dos pisos da Portaria Interministerial nº 994/2012, não é notificada ao CADE antes da sua efetivação; (ii) quando uma operação de notificação obrigatória é submetida, mas antes da decisão final do CADE passa a ser efetivada; (iii) ou quando uma operação não é de notificação obrigatória, mas o CADE entende que ela deva ser submetida à sua análise.
i. Operação econômica com violação do dever de notificar
Essa hipótese está delineada entre os Artigos 10 e 13 da Resolução nº 24/2019 e é o caso em que as partes com faturamento acima dos pisos estabelecidos pela Portaria Interministerial nº 994/2012 não submetem a operação a avaliação do CADE.
Nessa situação, o Procedimento terá início na SG, que terá 3 possibilidades de decisão: a) determinar o arquivamento; b) concluir pela necessidade de notificação da operação; c) ou decidir pela instauração de Processo Administrativo. Caso a SG entenda que a operação seria sim de notificação obrigatória, então o APAC será enviado diretamente para análise do Tribunal do CADE (TADE).
O TADE, por sua vez, possui 3 alternativas de decisão semelhantes às disponibilizadas à SG: a) determinar o arquivamento; b) determinar a notificação da operação com a aplicação de multa e reversão dos atos firmados no âmbito da operação até a decisão final do CADE; c) ou abertura de Processo Administrativo.
Caso a decisão do Plenário seja a de que a operação deva ser notificada, então da data da publicação desta decisão no Diário Oficial da União, as partes têm 30 dias para realizarem tal notificação. Caso a SG entenda que há necessidade de informações complementares, o que se denomina “emenda”, então a própria SG definirá o prazo para que tal emenda seja realizada pelas partes. Caso tal emenda não seja realizada, então a SG poderá aplicar multa diária de R$ 5 mil, que ainda pode ser multiplicada em até 20 vezes para garantir a realização de tal ordem.
O grande risco existente nessa situação é quanto a interpretação do que seja considerado como grupo econômico para fins de cálculo de faturamento, fazendo com que as partes tenham a falsa percepção de que elas não tenham atingido o piso de faturamento que as façam se enquadrar nos termos do Art. 88 da LDC. Outra situação que ocorre quanto a essa hipótese está relacionada com empresas multinacionais que não notificam no Brasil operações econômicas realizadas no exterior. Caso tais empresas atinjam o equivalente aos pisos de faturamento em relação ao seu grupo econômica e possuam no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante, então a notificação dessa operação se torna obrigatória perante o CADE. Mais detalhes podem ser encontrados em artigo específico sobre o tema[1].
ii. Operação econômica notificada, mas que se efetiva antes da decisão final do CADE
Essa hipótese está delineada entre os artigos 7º e 9º da Resolução nº 24/2019 e é o caso em que as partes atingem os critérios de faturamento e notificam a operação ao CADE, porém efetivam a operação antes da decisão final da Autoridade.
Segundo o Guia do CADE sobre Gun Jumping[2] (Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica), são 3 as situações que podem levar a efetivação da operação e que, se ocorrem antes da decisão final do CADE, podem representar a violação do Art. 88 da LDC: (i) trocas de informações entre os agentes econômicos envolvidos em um determinado ato de concentração; (ii) definição de cláusulas contratuais que regem a relação entre agentes econômicos; e (iii) atividades das partes antes e durante a implementação do ato de concentração.
Aqui, as empresas devem tomar muito cuidado durante o período entre a notificação da operação e a decisão final do CADE. Recomenda-se que qualquer eventual comunicação a ser realizada para o mercado sobre a operação seja previamente discutida com o especialista que estiver atuando no caso e que se mantenha a máxima prudência na comunicação entre as partes de modo a se evitar qualquer situação que venha a ser denunciada ao CADE como “Gun Jumping”.
iii. Operação econômica sem a necessidade de notificação obrigatória, mas que o CADE decida pela sua notificação.
Embora seja uma situação que possa ser considerada como excepcional, o CADE pode determinar a notificação de uma determinada operação mesmo que ela não esteja dentro dos parâmetros determinados pelo Art. 88 da LDC. O estabelecimento de pisos de faturamento é um corte arbitrário que se faz de modo a equalizar os escassos recursos disponíveis ao CADE para aquelas operações que tenham maior probabilidade de causar algum impacto relevante do ponto de vista econômico. De toda forma, sobretudo em tempos de crescimento rápido de empresas de tecnologia, há situações em que a Autoridade possa observar a existência de uma determinada operação que possa a vir causar impactos relevantes no ambiente concorrencial nacional. Em tais situações, o CADE pode se valer de um APAC para buscar que tais partes notifiquem a operação para que seja feita a análise sobre seus possíveis efeitos.
Essa possibilidade foi prevista pelo Art. 88, §7º da LDC bem como pelos Arts. 14 a 17 da Resolução nº 24/2019 do CADE.
Como não se trata de infração a ordem econômica, nesse caso, a SG tem apenas 2 possibilidades: a) concluir pelo arquivamento do feito; b) ou determinar a notificação da operação nos termos do Art. 88 da LDC. As partes serão comunicadas caso a SG decida pela obrigatoriedade da notificação. A partir dessa comunicação, as partes têm 15 dias para interpor recurso ao TADE contra a obrigatoriedade de notificação determinada pela SG.
As partes têm 30 dias para realizarem a notificação da operação junto ao CADE. Caso a empresa não recorra da decisão da SG, então os 30 dias se dão a partir do término do prazo de 15 dias que as partes dispõem para interpor recurso ao TADE. Entretanto, caso uma das partes interponha recurso ao TADE, então o prazo se dá a partir da ciência da decisão do TADE pela obrigatoriedade de notificação.
Penalidades
Embora o Art. 21 da Resolução nº 24/2019 traga um conjunto de regras para quantificar a multa a ser aplicada em caso de comprovação do “Gun Jumping”, o Art. 22 da Resolução permite que o TADE desconsidere tais regras para determinar um valor discricionário, desde que entre R$ 60 mil e R$ 60 milhões.
Ademais, o Art. 23 da Resolução nº 24/2019 permite que os APACs sejam encerrados mediante acordo celebrado com a Autoridade.
APAC nº 08700.005713/2020-36 – Representadas: Veolia Environnement S.A. e Engie S.A.
Na 197ª Sessão Ordinária de Julgamento, ocorrida em 25 de maio de 2022, foi à pauta o APAC que surgiu da representação apresentada pela Suez S.A e indicando que as empresas Veolia Environnement S.A. e Engie S.A. teriam realizado operação econômica que seria de notificação obrigatória ao CADE. O caso foi relatado pela Conselheira Lenisa Prado.
Segundo a representação, a Veolia teria adquirido a totalidade das ações que teria no capital social da Suez e que estavam sob poder da Engie.
Em paralelo a esta operação, a Veolia anunciou a intenção de realização de oferta pública voluntária para aquisição de ações com o objetivo de obter o controle da Suez em comunicado divulgado em 05 de outubro de 2020[3].
O mesmo comunicado indica que tal oferta pública ocorreria apenas se houvesse o aval da Diretoria da Suez, possivelmente após Assembleia de Acionistas. O documento indica que a Veolia não exerceria seus poderes políticos enquanto não tivesse luz verde da autoridade de concorrência da União Europeia.
A operação também seria notificada nos Estados Unidos, Marrocos, Reino Unido, China e Austrália, mas não menciona o Brasil, muito embora preenchidos os requisitos de notificação obrigatória em nossa jurisdição. Em 26 de janeiro de 2021, a Diretoria da Suez rejeitou a proposta da Veolia[4]. Segundo instrução da SG, a Engie informou que o comunicado do dia 05 de outubro de 2020 foi consolidado por meio de Contrato de Compra e Venda de Ações fechado em 06 de outubro de 2020.
Tanto Veolia, compradora, quanto a Suez, empresa-alvo, possuem atuação no Brasil. Ambas também têm faturamento acima do piso da Portaria Interministerial nº 994/2012. Dessa forma, tanto compradora quanto empresa-alvo preenchem os requisitos de notificação obrigatória do Art. 88 da LDC. Dado que a operação fora concretizada no dia 06 de outubro de 2020 sem a devida aprovação do CADE, então se observa a existência de violação ao dever de notificar.
Dessa forma, cronologicamente, em 09 de novembro de 2020, a Suez apresentou representação denunciando a ocorrência de Gun Jumping em relação a transferência de ações entre Engie e Veolia. Em 10 de março de 2021, a SG instaurou o APAC. Em 03 de dezembro de 2021 foi proferido o Despacho da SG enviando o APAC para o TADE e indicando que a operação seria de notificação obrigatória. Em 03 de dezembro de 2021, a SG emitiu Nota Técnica concluindo pela violação do Art. 88, § 3º da LDC em relação a operação.
Antes disso, em 13 de maio de 2021, a Veolia realizou a notificação da operação, que foi aprovada sem restrições pela SG em 29 de novembro de 2021 e transitando em julgado em 16 de dezembro de 2021.
Em 21 de março de 2022, as partes manifestaram interesse a Conselheira-Relatora Lenisa Prado. Em 17 de maio de 2022, a Veolia apresentou proposta de acordo, na qual a Compromissária faria a contribuição pecuniária no valor de R$ 60 milhões, o teto previsto pelo Art. 88, § 3º da LDC. O voto da relatora foi pela aprovação do acordo, o que foi acatado por unanimidade pelo plenário do TADE na sessão de 25 de maio de 2022. Assim, o Acordo de Apuração de Ato de Concentração foi assinado em 26 de maio de 2022.
Dessa forma, vemos a importância de que advogados e empresas envolvidos em operações econômicas se atentem à legislação concorrencial de modo que as partes envolvidas não incorram em custos elevados pela violação do eventual dever de notificar essa operação perante o CADE.
[1] https://medium.com/@kemiljarude/o-que-pode-ser-considerado-como-gun-jumping-pelo-cade-7ef7b098821e
[2] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/gun-jumping-versao-final.pdf
[3] https://www.veolia.com/sites/g/files/dvc4206/files/document/2020/10/Finance_CP_Veolia_Engie_Suez_051020_ENG.pdf
[4] https://www.ft.com/content/e5a09a98-18b0-42da-b411-c9cfb3149447